XP como motor do jogo

Nem sempre é fácil levar o tesouro (e o XP) de volta pra casa. 
Imagem criada por IA


Jogos de RPG onde o desenvolvimento das fichas dos personagens são importantes costumam controlar a evolução dos personagens através de pontos de experiência (pontos de XP). A maioria dos mestres e jogadores não reflete muito sobre essa regra mas, ela diz muito sobre o jogo que está sendo jogado e tem um importante impacto em como os jogadores vão interpretar seus personagens durante o jogo. Já virou lugar-comum entre aqueles que gostam de refletir sobre o RPG dizer que o XP é o "motor do jogo". E realmente ainda não foi encontrada expressão melhor para mostrar a importância dessa regra (que muitas vezes é explicada em apenas alguns parágrafos) na experiência da mesa de RPG.

Isso se dá por que a maioria das pessoas vão ser extremamente responsivas quando lhe oferecem recompensas. Os jogos de videogames, por exemplo, em que se acumulam pontos de qualquer tipo costumam ser aqueles que "mais viciam". A ideia de vencer desafios para acumular pontos e "vencer" é um estímulo muito importante para aqueles que foram criados na cultura dos jogos. Sabendo disso, quando o designer de jogos escreve a "regra de XP" para um determinado sistema, ele sabe muito bem que tipo de comportamento ele está estimulando na mesa.

Para que fique mais claro, irei analisar algumas das regras mais comuns de XP e analisar que tipo de jogo cada "motor" vai gerar:

- XP por monstro derrotado (AD&D 2e - D&D 3e/4e): Recompensar os jogadores por monstro derrotado vai estimular em mesa um comportamento que privilegia o combate. Os jogadores vão tender a buscar o confronto com criaturas poderosas (mas que julgam capazes de vencer) e a entrar nos ermos mais perigosos para encontrá-las. Os jogadores podem ficar extremamente felizes quando seus personagens derrotam um grupo de trolls na floresta, mesmo que estes não tenham uma moeda sequer para ser pilhada ou ninguém para salvar. Esse sistema tende a transformar o jogo em um grande "hack n slash", com os personagens se tornando máquinas de matar. Um dos efeitos colaterais mais danosos desta regra é estimular uma estratégia de incursões em ermos e dungeons, em completa desconexão com a campanha, apenas para "upar" os personagens pros confrontos importantes. 

- Milestones/Evolução por marcos da história (D&D 5e, Mörk Borg, maioria dos jogos narrativistas): A evolução por marcos imprime um jogo baseado no desenvolvimento da história proposta pelo Mestre. Acredito que ela foi originalmente pensada para jogos que tenham uma história sobre trilhos, criada pelo Mestre para os personagens interagirem. O Mestre determinaria a priori os acontecimentos que levariam à evolução do personagem, por exemoplo, "salvar a princesa", "matar o chefão", "desbaratar uma rede de criminosos", etc. Essa regra tende a gerar uma aventura sobre trilhos (railroad), visto que os jogadores já sabem desde o início que sua recompensa depende de seguirem um determinado caminho na história (eles não vão ganhar o XP ou progressão se desistirem de salvar a princesa ou se virarem aliados do chefão). Como não sou muito fã de jogos onde o principal da história é ditada por um Mestre que vai guiar os jogadores pelos trilhos, também não sou fã dos milestones.
Porém, em muitas mesas, esta regra muitas vezes é transformada em outra coisa. Muitos Mestres se apoiam em um suposto milestone para passar de nível os jogadores quando bem entender, assumindo para si o controle absoluto da evolução dos personagens. Esta prática leva a uma deturpação do motor do jogo, que se perde completamente, não raro levando os jogadores a pedirem XP ao fim da sessão.

- XP por ouro/tesouro (Primeiras edições de D&D e retroclones): A melhor e mais elegante regra já criada até hoje (na minha humilde e parcial opinião), a regra do XP por ouro imprime uma experiência muito particular: um jogo de saqueadores de tesouros em ermos e masmorras. Tem a vantagem de ser um motor de jogo que imprime esse estilo sem que o Mestre precise "forçar" qualquer história aos jogadores. Também é capaz de dar um caráter mais transparente e "gamista" à recompensa: os próprios jogadores são capazes de calcular o seu XP ao final da sessão e todos sabem que os pontos de experiência ali conquistados não foram dados pelo Mestre, mas conquistados através das escolhas dentro do jogo e da sorte nos dados.
Essa regra gera escolhas interessantes, onde o jogador precisa tomar decisões significativas: afinal, saquear ou não uma tumba é uma escolha envolvendo riscos e recompensas. E também interage magnificamente bem com as regras e escolhas envolvendo a carga do personagem (um salve ao DM Quiral que sempre nos lembra dessa questão importante). 
O problema do motor baseado em XP por ouro é que ele se aplica a um tipo muito específico de jogo. Não é possível jogar um jogo de heroísmo extremo, um jogo sobre sobreviver aos horrores dos Mythos, ou o meu cenário de horror e sobrevivência South Borg com esta regra. O XP por ouro é o melhor motor de jogo para uma proposta muito específica de jogo.

- XP por interpretação (World of Darkness): O XP por interpretação é um motor de jogo que visa estimular um jogo teatral. Aqui o foco é recompensar os jogadores por interpretar bem seus personagens. Normalmente ao final da sessão o Mestre julga se o jogador interpretou bem o personagem, se respeitou algumas características descritas em ficha (Natureza e Comportamento em Vampiro 3e), se abriu mão de algo dentro do jogo em nome de uma boa interpretação, etc. Esse motor de jogo, obviamente, vai levar os jogadores a se dedicarem aos diálogos, a interpretarem como uma cena de teatro ou filme, a privilegiarem esse aspecto em detrimento das regras e, muitas vezes, também da história. Pode ser útil para um tipo mais raro de rpgista, mas definitivamente não tem muito a ver com jogos como D&D.
PS: Minha experiência jogando Vampiro: A Máscara na década de 90 é que esse motor entrava em colapso em quase todas as mesas. Na prática, o Mestre dava entre 3 e 5 pontos de XP para os jogadores em cada sessão sem muito critério objetivo para isso. 

- Outros formas de XP: É possível que existam muitas outras formas (e também formas mistas) de recompensar jogadores com XP. Podemos imaginar uma mesa em que se evolui de três em três sessões, de três em três meses na vida real, a cada ano dentro do jogo, por hex explorado ou a cada vez que se recupera uma cópia do Necronomicon. Existe também uma forma mais orgânica de evolução, baseada principalmente em coisas que ocorreram dentro do jogo (estou pensando no sistema Chaosium/BRP em que se permite o aumento daquelas características em que o jogador tirou um crítico). Infelizmente, não tratarei de todas elas aqui.

Uma lição importante do XP por ouro

A efetividade do método do XP por ouro reside no fato de que é um motor extremamente vinculado à proposta de jogo. A regra de XP, por si só, impulsiona o jogo para a busca de tesouros nos ermos e dungeons, faz com que o jogador se preocupe com a administração da carga e comece a pensar dentro da proposta do jogo. E é exatamente isso que devemos buscar quando elaboramos as regras de XP para nossas campanhas. Se é um jogo sobre capturar artefatos perdidos, adote uma regra que leve os jogadores nesse sentido. Se é um hack n slash onde o objetivo é os personagens esmagarem monstros cada vez mais terríveis um atrás do outro, adote o XP por monstro derrotado. Busque sempre pensar um pouco sobre as regras de XP e evolução e como que elas estão impulsionando o seu jogo.

XP em South Borg

Essa reflexão surgiu em parte porque estou quebrei a cabeça para elaborar um sistema de XP e evolução para meu cenário, South Borg, um hack de Mörk Borg. As regras que criei, visando impulsionar um jogo de horror e sobrevivência em uma realidade pesadelo onde a civilização (e a troca baseada em metais) colapsou, ainda não me deixaram completamente satisfeitos.

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Comentários

  1. Muito bom o artigo.

    O XP por ouro realmente é um motor muito valioso, esse resgate da OSR reviveu um estilo de jogo perdido com o centro na aventura.

    Sobre o WoD, essa ideia de XP por interpretação parece ser uma ideia que realmente foi deixada para trás. Na edição atual (5ª ed) foi retirado o XP por interpretação, a fonte de XP agora é a participação nas sessões, e alguns suplementos tem regras opcionais para concender XP por ambições e desejos consquistados (que é uma mecanica narrativa nova). Pessoalmente acho que premiar interpretação algo ruim por que afasta do jogo quem não tem muita desenvoltura e fico feliz novo desing de XP da edição atual.

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    1. Boa noite, Ícaro
      Até hoje não inventaram mecânica melhor que o XP por ouro. Ela casa perfeitamente com o estilo de jogo do D&D clássico. Quando a proposta é outra não dá pra usar e em geral fica difícil de achar algo que encaixe tão bem.

      O WoD eu jogava na década de 90, quando Vampiro: A Máscara era febre no Brasil. O XP por interpretação eu nunca vi usado adequadamente. E quem tentava ainda acabava pressionada por uma certa diplomacia, pq não é muito legal falar pro jogador que ele interpretava mal.

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    2. Concorde 100%, dar XP por criterios subjetivos não é legal, gera esses problemas que você falou de uma diplomacia constrangedora.

      Ademais sigamos com nosso amado XP por tesouro pra jogos de aventua =)

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  2. Excelente reflexão! Outro ponto importante de se falar é que o XP por ouro tem um fator limitante que é a quantidade de ouro que o PJ consegue carregar até a civilização, ou seja, a mecânica de carga é muito importante pra limitar a progressão exagerada de níveis — o que é bastante desejável nos jogos Old School.

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    1. Foi comentado "an passante" no trecho de XP por ouro (dei até um salve pro DM Quiral que sempre ressalta a importância doessa questão).
      Provavelmente vamos voltar ao assunto em algum outro artigo.

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  3. Senti falta de não ter comentado sobre a proposta de XP por falha presente no Dungeon World. Inclusive essa é uma proposta que confere uma lógica toda especial a evolução do personagem.

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    1. O XP por falha é uma concepção interessante. Mas pressupõe que o XP não será o motor do jogo. Já que os jogadores não são incentivados a falhar. Mas seria interessante mesmo uma discussão sobre o tema. Quem sabe no futuro.

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  4. Pra mim o D&D 4e foi o percursor da regra do XP por marco, eu acho que D&D 4e e o 5e eles tem um papel de liberdade pra o mestre colocar o XP de acordo com a campanha ou aventura que ele está propondo em narrar!

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