Diversão no RPG: algumas questões

 

Interessante a dupla acepção da palavra "diversão" do dicionário. E vai ser muito útil para a discussão que quero fomentar nessa postagem. Não é de hoje que esse termo tem sido objeto de discussão dentro do RPG (e da OSR em particular), normalmente com discussões acaloradas e desnecessários debates filosóficos sobre o que seria "se divertir". A própria discussão sobre o termo costuma causar estranheza naqueles que entram nesse debate pela primeira vez. Afinal, por que outro motivo eu reuniria um grupo de amigos e amigas em torno de uma mesa se eu não tivesse o objetivo de me divertir? E essa estranheza tem uma certa razão. Diversão no dicionário é "algo que serve para divertir". Mas isso não esclarece muita coisa, então vamos ao que é "divertimento".



Divertimento é "aquilo que diverte; diversão, distração, entretenimento". Frente a essa ampla definição, e não vai nos interessar aprofundar muito mais. Chegamos a conclusão que: sim, o RPG é um divertimento, um entretenimento. Então por que insistimos em seguir essa discussão? Por que a finalidade dela não é parar por aí, mas entender como o "divertimento" RPG aparece em nossas mesas. E aí entramos nas seguintes questões:

1) Se o RPG é uma diversão. O papel do Mestre é divertir o grupo? Não!

O primeiro problema quando assumimos acriticamente que o RPG é uma forma de diversão é assumir, automaticamente, que o papel do Mestre é divertir o grupo. Isso é problemático na medida em que coloca sobre as costas do Mestre toda a responsabilidade sobre a condução da mesa de jogo. O Mestre pode pensar: "se Helena, a personagem de Carla, morrer como resultado de um combate, talvez ela não ache isso divertido. Minha função, portanto, como responsável pela diversão na mesa, é garantir que a personagem dela não morra." Ou então esse outro exemplo: "Paula teve uma ideia muito boa: derrubar o pesadíssimo lustre do salão sobre o mago maligno que está conjurando uma magia no meio da sala. Seria razoável que isso o matasse ou que ele ficasse preso sob o lustre. Mas não vou fazer isso. Por que um combate tão rápido e fácil não seria divertido. Vou dizer que ele esquivou." E assim começam todos os problemas que fazem o Mestre deixar de ser um árbitro que propõe desafios e apresenta um mundo fictício em um ditador que faz todo tipo de estripulia "em benefício da diversão dos jogadores". 
É preciso assumir que o Mestre é apenas mais um jogador com uma função diferente. Ele não é responsável pela diversão dos outros (pelo menos não mais que o resto do grupo) e sequer tem condições de prever o que vai ser divertido para cada um dos membros. 

2) Se RPG é uma diversão. O papel de um jogador é divertir os outros jogadores? Não!

O segundo problema é quando o grupo (ou algum membro dele) assume para si que o papel de cada um é contribuir na diversão um do outro. Então Tiago, cujo personagem foi reduzido a 1 ponto de vida, antes de propor que os personagens fujam de uma masmorra cheia de monstros, reflete: "Puxa, meus amigos estão doidos para ver o que tem no próximo andar desta "dungeon". Acho que não vou propôr a retirada por que não vai ser divertido para eles esperar a próxima sessão para ir até lá". O pensamento de Tiago é bonito e condescendente, mas sua postura é incompatível com a proposta do RPG de jogar um jogo de representação de personagens que buscam superar desafios. Não é seu papel prever o que é divertido ou não para os outros e fazer concessões em prol de uma pretensa diversão da mesa. Isso lembra muito aquele jogador de War que, para agradar alguém, deixa o outro ganhar. Na melhor das intenções ele acabou de arruinar a experiência de jogo do vencedor e dos perdedores, por que se tem algum motivo pelo qual eles se reuniram ali e acharam que seria divertido jogar War, com certeza não foi para perder horas em uma partida que termina em uma marmelada.

3) Não confundir diversão com humor

O poeta já dizia: "Fazer samba não é fazer piada. Quem faz samba assim não é de nada." E o mesmo vale para o jogar do RPG. É muito comum confundir a diversão de sentar numa mesa para uma partida com os amigos com o irromper de gargalhadas, risadas, etc. Ainda que tudo isso seja bem vindo na maioria das mesas, não é esse o objetivo de uma partida de RPG. Assim como ninguém vai sair rindo de orelha a orelha após assistir o filme "Hereditário" ou "Psicose" no cinema (e assistir filmes é uma diversão/entretenimento na acepção do dicionário), o mesmo pode não ocorrer em uma partida de Lamentations, Chamado de Cthulhu ou  mesmo em um vanilla assalto ao acampamento dos orcs em D&D BX. A alegria ou o prazer de jogar não está intimamente ligado às piadas e às gargalhadas. Ainda que em muitas ocasiões elas possam ser bem vindas.

4) Sobre a alegria de jogar RPG

Aqueles que se sentam em uma mesa com os amigos para jogar RPG são um tipo muito particular de pessoa. Elas gostam de sentar à mesa (ou em frente à tela) com dados, papéis, muitos livros e a mente aberta para imergir em mundo que não é o nosso. Eles são apaixonadas por tomar decisões por seus personagens, por ver a história se desenrolar entre uma decisão e outra, de ver o impacto de suas decisões nesse mundo imaginário. Sua diversão não depende da tutela do Mestre ou dos outros jogadores. Pelo contrário, sua alegria vem daquele caldo caótico e imprevisível provocado pela interação e pelas tomadas de decisões de todos eles. Quem não conhece o prazer de levar a mão à cabeça pela ação imprudente do jogador ao lado? De ver os dados te punindo severamente por ter optado por pular um fosso? Ou em pensar que não deveria ter ignorado o cheiro de fuligem que dominava o ambiente antes de entrar na sala quando a tragédia já está anunciada? Esse é o tipo de "diversão" que move um rpgista a voltar na próxima sessão, comprar mais um livro ou rolar o próximo personagem. O prazer está no jogar, no superar (ou não) do desafio, na história emergindo das decisões ou dos dados.

5) Leiam, conversem e pensem sobre RPG

Uma das coisas que mais faz nosso tão querido hobby evoluir é que ele tem uma forte tradição oral e escrita. Em geral, o rpgista gosta de conversar sobre o jogo, discutir sobre regras e estilos, de ler infinitos "manuais do mestre" e assistir vídeos e podcasts. Com exceção dos debates desrespeitosos e pouco produtivos, é muito bom que as coisas continuem assim. O RPG vem evoluindo com a troca de ideias entre diferentes estilos, diferentes jogadores e diferentes autores. Por isso,  recomendo de coração que um rpgista nunca use a "diversão" para justificar a estagnação do debate. Todos sabemos que cada mesa faz como quer, que usa e adultera as regras que quiser, que pode se divertir de formas diferentes. E é exatamente por isso que o debate aberto e respeitoso se torna tão necessário. E a crítica ao seu estilo de jogo ou ao sistema de regras que você usa pode ajudar a evoluí-lo, mesmo quando você não concorda com ela. Não use o fato de que seu jogo já é divertido como uma barreira para não discutir. Retornando à nossa primeira consulta ao dicionário: leia e discuta sobre o RPG sem deixar a "diversão" ser diversionismo para não refletir.

Mas não seja um babaca

Aconteça o que acontecer, não utilize as reflexões deste artigo para ser um babaca, bem para para aturar um desses. O fato da diversão não ser responsabilidade do Mestre ou de um jogador em particular não significa que não existam posturar que arruinem definitivamente a experiência do jogo. Reprodução de preconceitos como racismo, machismo, lgbtfobia nunca devem ser toleradas. O "jogador" que consciente atrapalha o andamento do jogo extrapolando sua agência para testar a paciência do grupo não precisa estar na sua mesa de jogo. O Mestre tirano que parece extrair prazer em utilizar seu poder fictício para compensar algum problema de autoestima na vida real nao merece sua companhia. Essas sim são experiências que garantem que ninguém vai se divertir numa sessão de RPG.




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