Mais um papo sobre XP: escorregamento do motor do jogo

No artigo XP como motor do jogo expliquei como compreendo a importância das regras de distribuição de pontos de experiência nos jogos old school e como elas foram pensadas, desde o ponto de vista do design, para orientar um certo tipo de engajamento dos jogadores com a mesa. A forma mais clássica, o XP por ouro, visa produzir um jogo focado em exploração de dungeons e ermos em busca de tesouros,  onde “destruir o mal” ou “derrotar monstros” têm uma importância secundária, pois o “objetivo” do jogo é outro.

Porém, neste artigo, eu pretendo problematizar essa questão um pouco e comentar alguns casos, não tão incomuns assim, em que o motor do jogo produz “escorregamento”, ou simplesmente não funciona, e entender por que isso acontece.

Arte produzida por IA

Imaginemos então uma mesa de jogo de OSE (Old School Essentials), sendo jogada rigorosamente com a regra de XP por ouro. Os personagens dos jogadores estão bebendo na taverna e o Mestre apresenta dois boatos, rolados aleatoriamente, sobre acontecimentos nos arredores da cidade. O primeiro diz respeito a um grupo de ladrões que se escondem na floresta, e que acabaram de assaltar uma caravana cheia de mercadorias caras vindas do Oriente. O segundo boato é sobre um urso-coruja que tem atacado e atrapalhado o trabalho de pescadores nos arredores do rio. O Mestre, esperando que os jogadores irão se orientar para o local que promete maiores recompensas (em ouro e XP), já pega suas anotações sobre o acampamento de ladrões. Mas é surpreendido quando o grupo, após uma breve interpretação, resolve que tentará ajudar os pescadores com o urso-coruja. Ocorreu, então, um “escorregamento” no motor do jogo.

Estou chamando de escorregamento quando a regra de XP, que deveria impulsionar o jogo, não funciona perfeitamente.1. A existência da regra impulsiona os jogadores para a busca de tesouros (ou outro motor), mas os jogadores (pelos mais variados motivos) escorregam e não se comportam da forma esperada. Se você é um Mestre com muitas horas de jogo, tenho certeza que isso já aconteceu com você, e provavelmente não apenas uma vez. Recomendo tratar esses pequenos desvios com a mais absoluta naturalidade, respeitando a agência dos jogadores, e fazendo-os pagar o preço pela escorregada (uma progressão mais lenta dos seus personagens) com a pura e simples aplicação da regra. Porém, quando em excesso, ou pior ainda, quando o motor do jogo simplesmente é ignorado e para de funcionar, talvez exija uma conversa ou repensar o funcionamento da mesa. 
Abaixo, irei elencar algumas das causas desse escorregamento e como entendo que se deve agir em cada situação:

- Os jogadores não são muito gamistas.

Existem jogadores que não são muito gamistas. Condições de vitória e evolução de personagens pelo avanço de níveis simplesmente não os motivam muito. Eles, honestamente, não estão preocupados se vão passar de nível no final da sessão. Se esse for o caso dos jogadores, o Mestre possui algumas opções: a) aceitar o alto nível de escorregamento que irá ocorrer em sua campanha (talvez até mesmo com a perda completa do motor do jogo) e abraçar o jeito como eles são; b) conversar com os jogadores sobre a proposta do jogo, no intuito deles apresentarem pelo menos um pouco mais de comportamento gamista e busca por XP; c) trocar o sistema ou o grupo de jogadores.

- Existem outros interesses que às vezes predominam

Em alguns casos, os jogadores acumulam interesses que podem predominar em relação ao motor do jogo. Um jogador pode decidir, na volta para casa e abarrotado de tesouro, desviar do caminho mais rápido e seguro por que tem curiosidade de saber o que tem nas cavernas de cristais. Nesse caso, o engajamento com o cenário e a curiosidade o levaram a ignorar o motor do jogo temporariamente e se arriscar muito mais do que seria razoável. Quando esse tipo de coisa acontece com frequência é preciso fazer uma avaliação: se o escorregamento ocorre de forma emergente, por que a história e o cenário impactou o jogador de uma forma tão profunda que ele ficou curioso demais para esperar. Acho que está tudo bem e faz parte do jogo. Mas se o jogador insiste nesse comportamente pode ser que talvez ele não esteja satisfeito com o motor do jogo e, consciente ou incoscientemente, ele empurra todos (inclusive o Mestre) para situações que não fazem muito sentido na sua campanha. É o caso do jogador que nunca quer sair da cidade, por que prefere representar o personagem em eventos sociais nas tavernas, praças e festas. Não tem nada errado com isso, mas ele está se enfrentando de forma tão frontal com o motor do jogo que talvez não faça sentido jogar esse sistema com ele. Nesses casos, recomendo uma conversa franca sobre a expectativa de todos com a campanha.

- O jogo é uma “One Shot”

Em jogos “one shot” não existe motor de jogo eficiente puramente baseado nas regras de XP. Em primeiro lugar, pelo motivo óbvio de que no fim do dia ninguém irá se importar com a evolução do personagem, afinal, ele não será mais usado. Nesses casos, só existe uma forma de deixar claro o objetivo do jogo: dizer abertamente qual é, dentro ou fora do jogo. Então, quando conduzir uma “one shot” em que o objetivo é capturar o máximo de tesouros da cripta, diga isso aos jogadores. Se os personagens foram contratados para salvar o herdeiro do Rei Sombrio, deixe isso claríssimo. Diferente de campanhas, onde o escorregamento pode ser tolerado e até ser algo interessante, nas sessões únicas elas podem arruinar toda a experiência do jogo.

Um brinde à diversidade dos rpgistas

A ocorrência de algum grau de escorregamento é inevitável por que o RPG é um jogo com muitas facetas, e com jogadores muito diversos. Alguns vão interpretar mais profundamente os personagens, outros irão se ater mais ao elemento jogo e às condições de vitória, outros vão amar descobrir as camadas de mistério dos cenários, e um longo etcétera. A maioria dos jogadores vai ter de tudo isso um pouco. E essa é uma das belezas do jogo de RPG. Preocupe-se com o escorregamento apenas quando ele for frequente e começar a indicar que, talvez, o motor do jogo seja inadequado para o perfil do Mestre e do grupo de jogadores.

1 Peguei o conceito emprestado da teoria sobre o funcionamento dos motores elétricos: escorregamento é a diferença entre a velocidade gerada pelo campo magnético e a velocidade nominal do rotor. Saiba mais aqui.

 

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Comentários

  1. No exemplo sobre uma atitude mais heróica do grupo, acho que ocorre também, além dos fatores citados, uma influência dos jogos pós Revolução Hickmann, com a ideia de que os personagens devem ser heróis. Influência presente não apenas no RPG, mas em várias mídias. De toda maneira, numa campanha sandbox, o caminho traçado deve ser escolhido pelos jogadores. Acredito que seja difícil um grupo coeso em torno de "abandonar" a busca por XP, então no fundo será uma discussão interna do grupo sobre o que fazer. Dito isso não vejo problemas em dar outras recompensas de acordo com as ações dos personagens. Agir de forma heróica pode não dar muito XP, mas talvez a influência política deles aumente, para o bem e para o mal.

    Em termos de one shot, tenho refletido que a melhor recompensa são elementos que possam ser utilizados no jogo, principalmente itens mágicos ou outras bugigangas que os ajudem a completar a aventura.

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    1. Sim. Me parece que sempre que tem o "escorregamento" é pq atravessou ali alguma outra influência. Somente nos casos em que isso seja permanente, ou muito recorrente, acho que justifica rediscutir se é realmente esse jogo que as pessoas querem jogar.
      Uma sessão zero (ou uma boa conversa) antes sobre o que motiva os jogadores a jogar RPG pode ajudar a fazer todo mundo entender a perspectiva de um jogo OSR.

      Abração

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  2. Novamente excelente texto Bernado. Vez ou outra essa é uma discussão que aparece no meio OSR e minhas dicas vão muito na mesma direção das suas: seja claro com os jogadores sobre a proposta do jogo e/ou eventualmente considere trocar de sistema ou alterar a mecanica de XP.

    Em alguns casos eu consideraria utilizar outros motores secundarios para tracionamento, como XP por hexes explorados ou por Dungeons Mapeadas e coisas assim que empurrassem para aventura.

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    1. Obrigado, Ícaro.
      Realmente a ideia de motores secundários me parece uma boa. Jogo muitos jogos de OSE/BX onde o XP por ouro não é o único motor.

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