Heroísmo e Old School
A literatura fantástica que influenciou gerações e gerações de rpgistas está repleta de histórias de heroísmo, seja na jornada de Frodo para destruir o Um Anel, nas lutas épicas de Conan contra gigantes e feiticeiros ou nas histórias dos cavaleiros de Rei Artur e sua Távola Redonda (é possível encontrar outros inúmeros exemplos no Apêndice N de Ad&d). Consequentemente, muitos jogadores (se não a maioria) se reúnem em torno das mesas, com seus livros e dados, na expectativa de participar de histórias de heróis e realizar feitos similares aos encontrados na literatura.
Em um primeiro olhar superficial, essa expectativa parece ir na contramão da proposta de jogo da OSR. Afinal, ela surge, entre outras coisas, da crítica às histórias de super heróis que dominaram o D&D desde a terceira edição. Mas eu acredito que com uma boa arbitragem e um pouco de reflexão sobre o estilo de jogo que se quer jogar, os jogos old school tem muito a oferecer a esse tipo de jogador.
"A paladin in hell" - Ilustrador: David Sutherland, no livro Ad&d Player´s Handbook |
Heróico ou super heróico?
“Jogos no estilo Old school são medidos por uma escala humana, e não sobre-humana. No primeiro nível os aventureiros são pouco mais capazes do que uma pessoa comum. Eles vivem através de sua sagacidade.”
Mathew J. Finch, “Rápida Introdução aos Jogos Old School”
Os jogos OSR são muito adequados para aqueles que querem jogar histórias de homens e mulheres comuns que poderão se tornar heróis a partir dos seus feitos e escolhas. São pessoas normais, talvez talentosas, que sobrevivem (ou não) aos mais terríveis desafios e, por experiência própria e com um pouco de sorte, vão se tornando verdadeiros heróis. Mesmo em níveis elevados, um bom sistema OSR não vai transformar o guerreiro numa máquina de matar indestrutível, ou o usuário de magia em um mago com tantos encantamentos que nenhum mortal chega perto. Pelo contrário, os heróis de uma campanha OSR podem matar uma hidra e caírem envenenados para um taverneiro mal intencionado. Podem resgatar os tesouros mais incríveis e se verem roubados por ladrões que conseguiram os surpreender enquanto dormiam em um acampamento provisório. O incrível feiticeiro do grupo, capaz de explodir uma câmara inteira quando está preparado, pode sucumbir apunhalado pelas costas por seus aprendizes. Resumindo, os personagens são heróis mundanos, não super-heróis de filmes da Marvel.
Heróis mundanos no jogo e no roteiro
Uma vez estabelecido que o RPG OSR não é um jogo voltado para construir histórias de super-heróis, mas de heróis mundanos, agora é importante entender o impacto do “elemento jogo” na vida desses heróis. Existe uma diferença importante entre o herói mundano do cinema e da literatura e o do jogo de RPG. E isso tem a ver com o fato de que o nosso jogo não é, nem queremos que seja, roteirizado. O personagem de uma mídia roteirizada está “protegido” pela trama da história. Muitas vezes, mesmo escolhendo pelo caminho mais difícil, as coisas conspiram a seu favor e tudo acaba dando certo. Não raro, também, um evento externo a suas decisões (a chegada providencial de um aliado, por exemplo) altera a cena e permite ao personagem se salvar. Quem nunca viu o clichê dos heróis que estão rendidos e desarmados e, mesmo com chances mínimas, resolvem reagir e acabam por derrotar os oponentes armados? Ou aquele outro clichê em que, no momento em que o protagonista será executado, o estalido da arma engana o telespectador, e é o oponente que cai abatido pelo tiro de um aliado que apareceu repentinamente.
O fato do RPG ser um jogo em que os riscos assumidos são decididos nos dados vai trazer um elemento ainda menos heróico para o nosso herói mundano: o risco real de morrer. Seu personagem vai agarrar o pescoço do guarda e tentar pegar a chave da cela em sua cintura? Role o dado, suas chances não são muitas. Ele vai perseguir o ladrão pulando de um edifício para o outro? Saiba que ele pode cair. Você não vai passar seu precioso ouro para os salteadores e vai entrar em combate mesmo com uma espada no pescoço? Boa sorte, mas suas chances não são muito grandes.
Em resumo, o elemento jogo (aleatoriedade dos dados e recusa do Mestre em proteger o personagem) vai provavelmente tornar seu jogo com menos atitudes heróicas do que um filme. Os bons jogadores de RPG OSR vão assumir riscos com cautela - tentar evitá-los a todo o custo, ou minimizá-los ao máximo. Eles vão tender a escolher o caminho mais simples e mais fácil. E, quando não o fizerem, terão altas chances de rolar um novo personagem. Mas isso não é ruim, muito pelo contrário, isso dá um enorme significado à história emergente que surge da mesa, e dos poucos grandes feitos realizados pelos jogadores. Quando eles forem contar sobre a pedra que rolaram da montanha para matar o troll, eles vão lembrar de como era difícil, de como tiveram que bolar essa estratégia, da probabilidade de falha do feito e, muito importante, de que não foi o Mestre que “ajeitou” tudo para que virassem heróis.
Mais ou menos heroísmo através da arbitragem
Se você e o seu grupo gostam de jogos com mais feitos heróicos, onde os heróis mundanos fazem coisas grandiosas com mais facilidade. É possível resolver essa questão através da arbitragem do Mestre. Se esse for mesmo o desejo do grupo, o Mestre pode conscientemente arbitrar como se fosse fácil realizar certos feitos. Em vez de dizer que existe 1 chance em 6 do personagem correr em cima de uma corda esticada sobre o abismo, coloque 3 chances em 6. Em vez de arbitrar que a chance de escalar uma montanha sem equipamentos é 1 chance em 6, aumente essa probabilidade. Se o personagem quiser se balançar no lustre e pular sobre os ombros do gigante, enquanto enfia sua espada na garganta do monstro, não torne isso quase impossível.
Mas, se você vai por esse caminho, duas dicas importantes. Primeira dica: seja consistente na arbitragem. Se um personagem correu sobre a corda bamba com relativa facilidade, ele não pode, logo depois, ter enorme dificuldade de andar sobre um muro. Ao adotar essa abordagem, você está assumindo que feitos heróicos são mais fáceis e mais constantes em seu mundo. Isso precisa se refletir no cenário de forma consistente. E a segunda dica: nunca confunda uma arbitragem que permite feitos heróicos com proteção do Mestre. É inadmissível, em jogos old school, recursos do tipo Deus Ex Machina, alterar resultados dos dados, salvar personagens ao arrepio das regras. Lembre-se: Isso é um jogo, não uma historinha. Sempre existe a chance de tudo dar errado e você acabar como mais um cadáver frio no fundo da masmorra.
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