O que é ilusionismo no RPG

Nesse artigo pretendo discutir uma das questões mais importantes sobre práticas de jogo no RPG: o “famigerado” Ilusionismo. Essa prática, que por muito tempo foi quase universal, e muitas vezes incentivada até pelos livros, sistemas e papas do D&D, entrou, a partir do movimento OSR, no rol das práticas proibidas nas mesas de RPG como o mais grave violador da agência dos jogadores.

Eu mesmo devo confessar que fui, por muito tempo, um mestre ilusionista (e modéstia a parte, um dos bons), e praticava sem refletir este mau hábito em praticamente todas as mesas e sistemas que mestrava.

Foi a partir do contato com o saudoso podcast Café com Dungeon do RafaelBalbi (ainda é possível ouvi-lo no Spotify e outros agregadores) e com uma série de blogs estrangeiros e nacionais que me dei conta da importância de entender o que é e quais os efeitos da prática ilusionista por parte do mestre na mesa de jogo.

 


 

O que é e o que não é Ilusionismo

Apesar de bastante conhecido na comunidade Old School, o conceito de “Ilusionismo”, ou “Mestre Ilusionista”, não é amplamente conhecido e compreendido pelos rpgistas em geral. A crítica a esta prática não consiste em uma restrição da criatividade do Mestre, muito menos em mecanizar por completo todos os eventos do jogo. Pelo contrário, os mestres mais criativos, para exercer de forma plena toda sua criatividade e sua capacidade de improvisação, precisam conhecer bem o conceito de “ilusionismo” para se permitir ser o mais criativo possível sem violar a agência dos jogadores.

A crítica ao “ilusionismo”, portanto, não é uma crítica à criatividade e à improvisação. Mas à restrição ao poder de escolha dos jogadores. Toda improvisação que respeita as escolhas dos jogadores, que não tenta colocá-los “nos trilhos”, que permite ao grupo impactar o mundo a partir das suas decisões na mesa do jogo são extremamente bem vindas numa mesa de RPG.

Darei um exemplo singelo: o grupo tem um encontro aleatório nas montanhas com um grupo de 2d6 orcs. O Mestre rola a reação dos monstros e, para a sorte dos jogadores, os monstros estão amigáveis. Nesse momento, o Mestre improvisa que esse grupo de orcs foi salvo da morte certa por um grupo de aventureiros em um passado recente e, por isso, se sentem em débito com os humanos e podem até ajudá-lo. Nesse exemplo, o Mestre não praticou nenhum tipo de ilusionismo, ele respeitou a decisão dos dados (ocorreu um encontro amigável com orcs conforme especificava as tabelas) e não feriu em nada a agência dos jogadores (que devem tentar explorar esse encontro pro seu melhor benefício). Aqui, não há porque se falar em prática ilusionista, visto que não foi violada de nenhuma maneira a agência do grupo de jogadores.

O Ogro Quântico

Para entender o que de fato constitui “ilusionismo” talvez seja interessante conhecer o problema do “Ogro Quântico”: aquele ogro (ou qualquer outro encontro) minuciosamente preparado pelo mestre, que vai aparecer “aconteça o que acontecer”, independente da escolha dos jogadores. O encontro pode ser muito divertido, e ter elementos muito bem pensados, mas quando o Mestre não permite ao grupo evitá-lo (por sorte ou por alguma medida de precaução) ele está violando a agência dos jogadores (ou seja, forçando os jogadores a uma experiência independente do que fizerem dentro da ficção do jogo). O ogro irá aparecer e lutar com os personagens, seja na sala A, Bou C, por que o Mestre assim quis.

Manipulação dos Dados e Hit Point variável

Outra forma muito comum de ilusionismo é a manipulação dos dados jogados atrás do escudo. O Mestre, muitas vezes em nome da “diversão”, manipula os dados para que o jogo se torne mais excitante. Dessa forma, se os personagens estão muito fortes, surgem muitos encontros aleatórios, se estão quase morrendo, dão “sorte” e conseguem atravessar a floresta sem esbarrar em nenhum monstro. Um personagem com 4 pontos de vida sofre apenas 3 pontos de dano no golpe do urso-coruja, criando ilusoriamente um momento dramático. E o chefão, independente do número de seus pontos de vida, não será derrubado por uma série de acertos críticos do jogador, pois ainda não é o melhor momento dramático para ele cair.

Nesses casos, para ajudar ou atrapalhar os jogadores, e normalmente justificado por uma pretensa habilidade em tornar o jogo mais emocionante. O Mestre vai retirando o poder dos dados de decidir os momentos de risco, controla toda a experiência e se torna o senhor absoluto da ficção. Um bom mestre ilusionista vai precisar enganar os jogadores para manter a mesa divertida. Afinal, qual a graça de saber que seu golpe só vai matar o chefão quando o mestre quiser, independete das suas escolhas ou das rolagens de dados? Qual a graça de saber que, quando você erra, o Mestre sempre dá um jeito de te salvar, com alguma marmelada na manipulação dos dados?

O Mestre ilusionista acredita que é um artista. E que ele está manipulando a ficção em nome da diversão da mesa de jogo. Mas não enxerga que o que ele faz é arruinar todo o elemento jogo, toda a necessidade real de dados. É exatamente o contrário da experiência proposta pelo movimento OSR. Um bom jogo de RPG não é o mesmo que uma boa história. Um encontro com um gigante em que os jogadores venceram rapidamente por sorte nos dados ou por uma ideia genial, é muito mais divertido que uma marmelada do Mestre. Um encontro com goblins ou outro oponente “fácil” que leva o grupo à morte por um capricho nos dados não daria um bom livro, mas é exatamente a experiência que só um RPG sem ilusionismo pode proporcionar.

Outras formas de ilusionismo

Os jogadores não estão indo bem e o Mestre decide alterar o número de monstros da dungeon? O tesouro decepcionou e o Mestre decide compensar no próximo? Por coincidência o personagem encontrou (contra todas as possibilidades) a shuriken mágica que seu personagem tanto queria (um presente do Mestre)? As poções de cura só aparecem nos tesouros quando os jogadores estão precisando delas? Um grupo de paladinos surge do nada para salvar os personagens da morte certa? Tudo isso são alguns dos exemplos de “ilusionismo” praticados por Mestres em jogos de RPG. São práticas ruins que arruinam o “elemento jogo” e o poder de decisão dos jogadores. Se os personagens estão evoluindo muito mal na dungeon, parte da experiência do jogo é que eles próprios entendam sua situação e tomem medidas para minimizar os riscos dali pra frente (Vão embora? Vão arrumar um jeito de descansar? Vão se arriscar menos?). Se o tesouro decepcionou em uma tabela, é parte do azar dos aventureiros, não há nada a se recompensar e os jogadores terão que conviver com esse risco inerente à profissão de aventureiros. Se o personagem se especializou em “shuriken”, parte do preço a ser pago é exatamente a dificuldade em encontrar um item tão exótico (ou você acha que a maioria dos guerreiros usa espada porque?). E um longo etc.

Recomendo aos mestres e jogadores pensem sobre o problema do “ilusionismo” e evitem esta prática. Ferir a agência dos jogadores e transformar o jogo numa grande marmelada (ou coisa pior) pode ser uma experiência interessante no início, mas que só se sustenta até ser descoberta. Abracem o poder das escolhas, o capricho dos dados, a letalidade de um jogo sem subterfúgios, a enorme satisfação de triunfar ou fracassar como fruto de suas próprias escolhas. Abracem o estilo de jogo da velha escola!

Mais sobre o Mestre Ilusionista com o DM Quiral aqui

Mais sobre o estilo de jogo de Rafael Balbi; Oil Fantasy

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